VERDADES


Pensava em ser e sabia que era, mas ainda não sabia o que podia ser ou encontrar em torno de seus esconderijos estranhos. Não tinha pretensão de ter ou ser mais que alguém, e nem tinha vontade de sucumbir a desejos antigos, por tortas ou meias palavras que, paralelamente, sempre chegam trazidas por abutres. Em casa, às vezes, sentia-se acolhida; outras, sentia-se sufocada, ainda assim gostava de sua casa, do jeito que as paredes olhavam-na, gostava do cheiro que vinha do quarto e gostava de seu banheiro. Não tinha muito que dizer de si, talvez nunca precisasse falar de si e nunca enxergou que precisavam enxergar-lhe. Às vezes, tolhida, amedrontada, amontoada. Às vezes, nem entendia porque queria ser o que ainda não sabia, mas queria de um jeito estranho chegar a lugares não conhecidos, onde seus sapatos não conheciam o pó e, por mais que, às vezes, sentisse ser varrida de um lado para o outro, de cima para baixo, por mais que, muitas vezes, tenha se deixado assim, ainda ouvia o canto do sabiá e tinha um suave desespero de voar, talvez encontrar nos céus as respostas que nem ela sabia que queria ter, pois o que era oculto encantava-a, e os mistérios construíam-lhe desejos pertinentes, que envolvia suas correntes sanguíneas e davam-lhe um gosto natural e sublime de desvendar disparates, que agrupavam-se em sombras. Tinha fome por sinais que revelavam o que queria desvendar, pois ela escolhia o que agradava e via o que queria, assim, evitava não sofrer com a verdade que muitas vezes arrasta para um breu de desilusões e decepções. Talvez, verdades arrancassem-na de seu sossego ou arruinasse suas pirâmides tão bem construídas, feitas especialmente para protegê-la dos anseios, do que queria ou do que iria fazer. No entanto, sabia que precisava de verdade, mas pensava se realmente existiam verdades, pois até onde tudo é verdade? Até onde o noticiário contava o que realmente era e até onde alguém pode destruir sonhos e perspectivas de outros pelo simples prazer de arruiná-lo? Até onde pessoas não enxergam o sofrimento de outros, abandonados pela própria sorte, onde a miséria, a fome, a dignidade, arrastam a uma situação infeliz? Até onde o egoísmo e a inveja permitem um ser humano deixar de amar? E se existe verdade, até onde os que pregam o amor e a paz, realmente lutam por isso? Será que pela manhã, além de lavar o rosto, ainda se agradece pela noite em sossego, onde a casa em calmaria adormeceu ao som suave do céu, que vela as estrelas até que elas brilhem? E as verdades?

Sabia que precisava sair de suas paredes conhecidas, sabia que precisava lutar por si, sabia que lá fora encontraria a resposta às suas preces e que, para tanto, precisava seguir etapas e largar o hábito de apenas ver, de apenas ouvir, de apenas tentar entender e, mesmo que existissem muralhas, sabia que precisava passar por elas e que, no monte, de lá sempre ouvia os céus. Talvez observasse o por do sol e, lá de cima, olhasse o mar aberto como se a esperasse para um abraço, pois queria muito tentar entender toda sua forma abstrata, onde os absintos de suas ações deixavam-na fervilhando. Onde as chamas de seu coração eram inexoráveis e, muitas vezes, pediam aos seus enigmas que fossem descobertos, pedia que o silêncio fosse declamado para que outros falassem o que, na verdade, ela já sabia, para que sua loucura que, mesmo loucura era sã, devolvesse o dilema de não saber o que procurava. Não tinha pretensão de guerra, mas sabia que para satisfazer seus impulsos precisava dançar entre espinhos e sentir o gelo queimar o coração. Sabia que precisava sentir fome e, mesmo com fome, diante do pão, apenas o olharia, pois o prazer de olhar era maior que o prazer de fartar-se com ele, e seu desejo aumentaria cada vez que sentisse o aroma, e seria feliz de tê-lo, e a fome seria o sinal da caça, pois a caça depois de morta está sacramentada e só outra caça dará o sabor de conquista, mas sabia que ainda assim poderia várias vezes desejar o mesmo pão e consumar seus anseios, mas a fome era sua guerra. E não sabia ainda porque precisava ouvir as mesmas melodias que sangravam suas dores, mas elas a faziam sentir-se viva e descobria a cada dia que sua estranha vontade dependia de sentir e, muitas vezes, sentir era sofrer. Não queria alimentar o sofrimento, mas procurava superá-los e não tinha outra maneira, além de enfrentá-los, para socorrer suas fomes, seus anseios, seus medos, suas caras, suas forças, seus amores, e não tinha força ainda para falar que não amava, pois o que mais a mantinha viva ainda era um tal de amor, amor a tudo ao que dedicava tempo, e a tudo que ainda sobrava de sonhos despedaçados, e a tudo que se construía, e a tudo o que a fazia sorrir em doses lentas e fartas, e, às vezes, chorar em doses, doses apenas, doses de algumas cicatrizes exaltadas e o choro, às vezes, triste demais para lembrar-se do porquê do choro, e apagava a vela que acendeu na hora do jantar, do jantar que esperou o amor, do amor que não foi e que deixou-lhe com fome, em meio a um banquete, e a vela apagou e, calmamente, desfez a mesa e tudo que estava lá, até a flor do jarro que tinha um cartão escrito com letras decoradas, falando de um amor eterno, de sempre e sempre e para todo sempre. Descobriu, assim, que o sempre não existe e que o sempre é a vontade de viver e de lutar por si, mesmo quando a luz do jantar de velas é apagada com soluços inflamados pela perda do deleite do que não foi e do que não era, e que ela achava que era. Pois o quadro na sala tem a família e um retrato da avó, que foi casada cinquenta anos, com um sorriso terno ao lado do homem com semblante sério, que ela dizia amar, mas será que amava? Será que a imagem do quadro era verdade? E as verdades? Onde estão todas as verdades? Hoje, apenas acha que a verdade está na vontade de comer um pão, um pão que a deixa com fome, mas que ela não come, por vontade de apenas vê-lo.



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