O LABRADOR
“As paredes ficaram cinzas, a cama transbordou do
vazio, as delícias murcharam e até o labrador emudeceu de tristeza.”
Ele emudeceu, paralisou
ou talvez esteja velho, por mais que eu faça e por mais que algumas vezes até
consiga ver o brilho do seu olho radiante, logo tropeça em seus segredos e
cabisbaixo afasta-se. Tenho pensado que isso acontece desde que ela... Não
quero falar dela, foi-se, partiu e não quis deixar rastros, porém, não posso
culpá-la eu sempre soube, eu sempre soube!
Mas o labrador não
sabia, e em nenhum instante ele foi informado que aquela que ele
instintivamente, achava ser mãe, partiria. O que ele sentia era o cheiro dela
rodeando toda casa e nos olhos a tristeza de não ver seu semblante, quando
chegava todas as tardes e sorrindo o acariciava. Às vezes iludido pelo barulho
de alguns passos que viam nas calçadas corria ao portão, feliz, em saltos na
esperança de encontrá-la, mas não era nada, não era ela e aqueles passos,
aquela sombra que se aproximava nunca era dela. Dele ainda sentia o cheiro, que
agora trazia um semblante pálido misturado com o mofo do coração que guardou. E
tudo aconteceu naquela noite, àquela noite que como se por um aviso dos céus,
ficou tudo repentinamente escuro e o que ele escutava era o sussurro do coração
de Isabella. Brincou toda tarde e a mesma fez questão de dar-lhe banho, quando
o abraço demorou-se seu latido ruiu repentinamente como se estivesse recebendo
a solidão, não sentiu o afeto, sentiu o medo, sentiu a angustia no olho umedecido
dela. Imediatamente tentou animá-la e deu voltas e voltas ao redor de todo
jardim, pulava ao seu encontro e sorria ao latir. Em vão, em vão. Isabella
,entrou na casa e logo depois partiu , partiu e nem ao menos olhara pra trás, nem
ao menos tentou levá-lo. E tudo o que viu foi seu vulto sumir rua abaixo.
Longe, Isabella pensava! Pensava na casa, pensava
nas flores, pensava no labrador e pensava em Fernando. Não sabia se fazia o
certo, mas sabia que era preciso está certa do erro e para isso, precisava retornar
e naquele momento retornar era deixar tudo o que alegrava seus dias, tudo o que
sua alma amava. Lembrou-se do caderno de anotações que esquecera na cabeceira da
cama, não podia, não podia deixá-lo, arrumou-se para voltar, mas conteve-se e
seguiu. Nas ruas tudo estava grande demais, as pessoas passavam rápido demais e
o som era mudo. Cada passo era o seu passado voltando, o passado que não foi
devidamente enterrado e que agora precisava encará-lo novamente.
Talvez Fernando não me perdoe, talvez nunca mais eu
escute o som do seu riso, talvez... O labrador o fará companhia sei o quanto é
apegado, eu não podia trazê-lo estaria tirando mais que um pedaço de Fernando,
os olhos dele pareciam falar comigo quando o abracei, ele é um cão, mas sinto
que ele me entende, espero que não sofra com minha falta. E Fernando? O que
sentirá quando encontrar o escrito na geladeira, preso com um imã, como se
fosse a lista das compras do supermercado ou a conta paga da luz? Meu Deus o
que eu fiz? Mas, talvez não o deixe tão triste e ler possa ser mais fácil que
ouvir. Talvez entenda o que eu na minha
fraqueza não pude falá-lo, talvez apenas rasgue meus versos e esqueça-se de
mim.
Na casa as paredes escorriam
a cor dos dias felizes. O labrador vez por outra se desassossegava e em uivos
reclamava a inércia dos passos de Fernando que não a trazia de volta, não a
trazia. Porém, quando sentia as mãos de Fernando o afagando, diminuía sua dor é
como se os dois agora tivessem um contrato particular de amparar-se. Pela manhã
recebia seu alimento, o dono era quieto e o sorriso era raro, ainda sentia o
cheiro de Isabella e vez por outra procurava o portão no mesmo horário que
costumava recebê-la, o tempo foi esvaindo-se e a falta dela o fez emudecer.
Fernando também se
calou e começou a andar em outros lugares, ler novos livros e olhar novos
olhares, seria um novo caminho, um caminho longe do tempo que se foi. Ainda assim,
um dia cercado por seus fantasmas a encontrou em suas lembranças e em um email,
escreveu:
“Por que foi embora?”
Cedo, percorreu toda casa mais uma vez, em busca do
que ainda ficou dela e se livrou de todos os pertences, menos do caderno de anotações,
esse ele guardou. Pôs numa caixa longe de suas vistas e o escondendo entre
tantos outros documentos, fantasiava não saber possuí-lo, como se não vê-lo
fosse suficiente para esquecê-lo. Então omitiu o saber possuir. E em busca de
novos aromas e jardins, decorou seu coração com um novo sonho. Sim Fernando
seguiu seu caminho com um novo amor. Entretanto o labrador tão intimo de tudo aquilo,
mais uma vez não foi avisado, tudo ali era tão seu e ao mesmo tempo tão longe
de ser seu que a única coisa que percebeu, foi as paredes sendo pintadas e a
casa com um novo aroma. O cheiro era bom, não era o de Isabella, mas era bom,
as flores começaram a abrir-se novamente e até escutava o ruído do sorriso de
Fernando. Temeroso tentou evitar a nova cúmplice dos dias dele e Fernando, mas
aos poucos seu latido voltou e os vultos que se aproximavam do portão todas as
tardes já não o incomodavam. Era vida, sim a vida que voltava aquela casa.
Isabella se lembrava de seus afetos, ainda guardava
em seu celular a foto de Fernando e do labrador, aquela imagem era o que tinha
deles, era o que pode levar deles. Consultando seus emails, leu a frase que
Fernando a enviou. E tudo aquilo que a atormentava e toda saudade contida a
encontrou como um terremoto de sensações, lembrou-se do bilhete deixado na
geladeira, lembrou do riso de Fernando e das brincadeiras com o cão. Decidida o
escreveu, e foi descrevendo calmamente como sua vida mudara, até que... largou
todo escrito e resolveu voltar e a vontade de chegar era tanta que não
conseguia conter-se, no caminho imagina a casa , imaginava o jardim e imagina o
pulo que Sansão daria em si. “Sim ele é tão agitado, ele é tão feliz!”
As ruas pareciam longas demais e cada passo a deixava
sentir um frio na espinha. Não via a hora de poder tocar Fernando e falar,
falar sobre tudo o que passara e tudo o que sentira e principalmente pedi-lo
perdão. Aos poucos se aproximou percebeu que as paredes estavam coradas, o
jardim florido e no portão nada encontrou, nada encontrou além do labrador ao longe,
quieto a olhando, com uma tamanha indiferença que não a tratou nem como se
fosse uma estranha, que irritando-se com sua presença, latiria enfurecido para amedrontá-la.
Não, ele não se mexeu, nem ao menos o rabo balançou e quando pensou em chamá-lo
ouviu vozes que não queria ouvir, e risos que não queria escutar. Afastou-se
devagar e viu seu mundo, um mundo tão seu destruir-se. Viu que não cabia mais
naquele mundo, nem naquela casa, nem no coração de Fernando e até mesmo não
cabia mais na alegria do labrador. O labrador que tão indiferente a olhou, o
labrador que nem ao menos se levantou. Escreveu rapidamente um bilhete, jogou
na caixa de correspondência e partiu.
Amanheceu e quando Fernando saiu Sansão já estava
ali pronto, como se estivesse incumbido de uma grande missão, próximo a caixa
de correspondência latia para seu dono. Que brincava com ele e percebia seu
estado de euforia. Fernando calmamente separou as correspondências. Até nas
mãos receber o bilhete de Isabella. Sentou-se e leu:
“Nunca fui embora! A distância não deixa longe o
que está dentro! O que deixa é saudades e quando ela me visitou, voltei! Mas,
As paredes estavam coloridas, a cama tinha um novo aroma e até o labrador me
negou o sorriso! Desolada, percebi que já não morava em seu olhar!”
Lene Dantas
Minha querida, não sei se por estar sensível demais, esse texto me arrancou lágrimas... Senti a dor do cão... Senti a dor da vida... E sem querer senti a dor de ainda me sentir viva. Uma história muito linda e tocante... Triste como todo romper de uma existência, pois há muitas formas de ver uma existência se esvaindo.
ResponderExcluirParabéns pelo belo trabalho.
Gil Ordonio
Bom dia, Gil Ordonio! Estou muito feliz de saber que você gostou e que de alguma forma o conto tocou você! Agradeço pela atenção que teve em comentar, fico realmente muito grata ! Tenha um dia abençoado!! Volte sempre!!! Beijos
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