RO-SA-NA ( O leite ou o vinho?)
Eu — Ao invés
de uma, sou duas. Não duas. Digo melhor, seria muitas. Agora, estou sentada a mesa,
tenho leite e vinho diante de mim. O que deverei beber? Se eu beber o leite,
fortaleço meus ossos, antes que eles decomponham-se aqui e como cinzas fúteis e
velozes, misturem-se a todo invisível que permeia esse ar, esse ar tão meu e
tão de outros. Pergunto-me: Como serei apenas uma, se respiro os outros?
Respiro minha vizinha que me observa todas as tardes , quando me dirijo
calmamente à área de estar, para saciar a sede de minhas rosas. Respiro os
olhos inquietos do meu chefe, que moribundo, hipocritamente pergunta-me se está
tudo bem, sem nem ao menos esperar, que eu, entre um segundo e outro, abra meus
lábios e insinue um simples sorriso corado, e o fale, o que entala meu paladar,
toda vez que tento engolir seu sorriso ironizado. Respiro a orquestra de sussurros
entre olhos, ao entrar cedo pela manhã num ônibus lotado, onde procurando
calmamente um espaço, único e meu, eu fique ali, contida, quieta, encostando-se
a todos e ao mesmo tempo, sozinha, num particular entre sonhos e anseios, entre
conversas que ainda não tive tempo de terminar comigo mesma, num espaço de
tempo em que reflito, enquanto vejo as mesmas imagens diárias passar sobre meus
olhos. Não olho pra ninguém e ao mesmo tempo vejo todos, não conheço ninguém e
ao mesmo tempo são tão íntimos e trazem o mesmo cheiro do dia anterior, trazem
assim como eu, a mesma expectativa consciente que o tempo passe rápido e que
logo o dia termine, para que em regresso possa desfazer-se de toda roupa e
sentir seus pés livres de seus sapatos. Adoro sapatos, também respiro meus
sapatos, semana passada enamorei-me de um scarpin cor de vinho, olhei-o e ainda
me propus a tocá-los, na bolsa olhava meu cartão de crédito, eu sábia não poder
possuí-lo no momento. Mas, meus pés nervosos queriam calçá-los. Senti-me então
como uma adolescente, que encontra seu primeiro amor e anseia pelo gosto do
primeiro beijo, aflita teme não saber os movimentos precisos quando se encontra
um lábio em outro, ansiosa sente o gosto na boca do beijo desejado, mas, com a
mesma voracidade de possuí-lo encontra-se no receio de executá-lo e corre para
longe do alvo de desejo, ou apenas o maldiz com uma expressão desdenhosa,
ansiando na realidade o bem querer. Eu corri do sapato. Se lembrei de José do
Egito, que correu para não trair a confiança de seu Amo e nem de seu Deus. Eu
corri, para não trair a mim e nem ao meu bolso. Mas, ainda no ônibus penso, que
embora meus pés calcem um conforto que escolhi (embora não seja o scarpin
vinho) não vejo à hora de poder livra-me deles, do meu sapato preto de verniz,
com uma simples e delicada fivela prateada, do lado esquerdo, não vejo a hora
de em casa, longe dos olhos curiosos de minhas colegas, escolhidas ironicamente
pelo mesmo chefe que me faz ter surtos nervosos, posso enfim, olhar meus pés,
poupá-los e deixá-los livres. Posso também, olhar meu reflexo no espelho,
quando finjo não perceber que a pele corada ,mostra os sinais de tudo o que me
rodeia á tantos anos. E o que eu fui há tantos anos? Senão uma criança que
ansiava o saber e entre aromas e sabores, respirava o universo de todos que,
estavam ao meu redor. Respiro meu casamento, em um estado de inércia, em que os
cheiros que me agradavam ha um tempo, agora se alastram como fungos ociosos, e
se escondem acomodadamente num ambiente de conforto. Como? Como não ser mais de
uma, se todos os dias, confundo-me entre o que sou e o que quero ser?
Se bebo o vinho,
inebrio minha alma, a faço cantar e sorrir de coisas que muitas vezes
sutilmente escondo. Inebrio minha alma, antes que ela congele, e ali, sem vida
não possa alcançar os céus, nos momentos que em sonhos encontro meus tesouros.
Saciar-se desse vinho, ainda que me tire de um estado sóbrio, pode dar-me
coragem para enfrentar meus medos, antes que eles me tomem, antes que eles me
façam permanecer em círculos obsessivos e doentios. A mesa convida-me e algo me
diz que devo provar do leite, mas também do vinho. Algo diz que devo sim ser
uma ou mais de uma, ou apenas me perder em meus caminhos descalçados.
Hoje na
lanchonete, percebi um homem olhando-me, mas ele não olhava apenas pra mim e
sim para nós, todas nós. Éramos quatro e ele não olhava-nos com os olhos, ele
olhava-nos com os ouvidos. Discreto, quieto, perdia-se em seu alimento e
achava-se no que falávamos. Talvez tentasse entender o que pensamos, já que nós
mulheres, temos tanta facilidade de falar de nossas dores, de repente deixaríamos
claro em nossos segredos forjados o que tantos tentam entender. Ele
respirava-nos com tamanha vontade como se a vontade de o saber fosse maior do
que saciar sua fome. Mas nós mulheres sabemos. Sabemos como ludibriamos a nós
mesmas e também aos outros, como dançamos com passos quietos em situações
avessas. No fundo o que falamos em uma mesa em quatro, nunca são fatos
perfeitamente contados, nenhuma de nós confiamos plenamente na outra e sempre
nos resguardamos do que dizemos. Talvez á minha amiga; Sim, aquela que eu tanto
admiro, eu possa contar um pouco mais, um pouco mais do que ensaiei. E ainda assim, que fique um pouco em mim que
nem eu mesma sei se devo dizer-me, daqueles dias em que tomei atitudes que ao
me inebriar de vinho ou saciar-me de leite, deixei de ser o que achava ser. Coisas
que Deus sabe e só ele sabe, nos passos que percorri o caminho que meus pés
escolheram pisar e por onde tropecei, nos dias quietos, nos dias tristes, nos
dias frios e também nos dias eufóricos e quentes.
O homem ansioso, talvez quisesse apenas saber
como nós em quatro, podíamos em alguns minutos falar milhares de dezenas de palavras,
onde a maioria é deixada e despercebida, trocadas mais tarde por um simples, até
logo. Trocadas depois por particulares entres duplas que se desfizeram ou entre
o leito conjugal de cada uma e seu amante. Ele atento, talvez riu no seu olhar de
escrutinador, talvez comentou com alguém, talvez se encantou por nós mulheres
mais uma vez, ou talvez percebeu o quanto somos parecidas. Nos enfileiramo-nos depois, deixando o
ambiente quieto, silencioso, deixando apenas a vaga lembrança de nossos risos e
confissões permitidas. Onde entre uma conversa e outra olhávamos uma para outra
e nos enxergávamos, um pouco as mãos, ou cabelos, ou até os sapatos de verniz.
Percebo que ele também compactou conosco e mais tarde vai respirar um pouco do
que viu ali. Gostei dele! Acho que o seu jeito tranqüilo fez cócegas em meu coração
eufórico. No final então, eu o respirei, e isso me deixa com uma impressão
esquisita, sobre qual será a probabilidade de vê-lo mais uma vez. Dessa vez,
quem sabe eu calce meus sapatos novos! Sim porque vou à loja e comprarei o scarpin
cor de vinho e assim, ele pode até, ao invés de nos enxergar, enxergar meus
sapatos. Embora homens não enxerguem sapatos. Gosto dos meus pés e ele pode
gostar também. Ele pode até enxergar meu nome na tatuagem que fiz no pé
esquerdo e quem sabe, entre uma mordida e outra do pão de queijo que devorava
num ato involuntário de desejo, soletrar: RO-SA-NA. Fazendo com que eu perceba
que , entre todas , foi eu que o chamei atenção.
Devo ter provado o vinho e
agora estou aqui bêbada, falando bobagens que só conto a mim. Sim é dessas
bobagens que falo que respiramos e inalamos e guardamos conosco. Essas ficam
assim, deixadas em lugares ocultos aos outros, mas de fácil acesso á nós. Preciso levantar-se agora, não sei bem que
horas são, mas é tarde e agora devo conversar com meus lençóis.
Deixou a mesa,
sem provar do leite e do vinho, deixou a mesa lentamente com um sorriso
enfeitiçado no rosto, como se na cama, fosse deparar-se com o homem que a
enxergou com os ouvidos.
Lene Dantas
Comentários
Postar um comentário