PASSOS
PASSOS
Assim delicado
tão delicado como uma bolha, como a estrutura da bolha de sabão. E num piscar
de olhos. Pluft! Tudo poderia acabar. E
assim as pontas trocavam-se, uma ponta na outra, a outra na ponta e ninguém
mais poderia dizer, como começou e qual o fim. E o fim? Será que houve o fim? Mas,
o que seria o fim além do recomeço? Era coragem. Coragem que faltava. Tinha
mesmo que seguir a rua sem medo de dobrar na esquina e também não mais poderia
ficar presa em círculos. Encontrar-se. Sim encontrada. Encontrando a vida, a
vida que deveria ter encontrado á muito, muito tempo.
Parou um pouco e
soltou um suspiro. Um suspiro cansado de muitos dias. A febre voltara. Foi ao
quarto e na terceira gaveta da cômoda pegou o antitérmico. Olhava seus
guardados, tudo estava em plena ordem. A cabeça estava oca e não sabia o porquê
de não pensar em nada lógico. Sentou-se na cama nostálgica e lembrou-se de
quando sorria, sorria várias vezes, sorria um riso farto e bom. Como aqueles
risos que se dá no jardim da infância. Um riso dos dias inocentes, um riso que
causava dor no idoso que passava e reclamava do barulho. O barulho que o trazia
lembranças de um tempo onde sua vida também era tão doce e tão casta e tão
quente e risonha como o riso daquelas crianças que brincavam de fazer bolas de
sabão.
A mãe sempre
fora ríspida e o pai conformado com o conformismo da vida que escolheu. Tudo
muito projetado naquela casa de três pessoas, onde uma olhava a outra sempre
com medo do que estavam a pensar. Estudava compulsivamente para livrar-se dos
seus anseios e ali nas equações matemáticas flutuava e viajava em respostas que
só ali era capaz de encontrar. Ali entre seus cálculos exatos, imaginava sua
vida como uma equação e tudo seria tão mais fácil, mais rápido e talvez menos
trágico. Lembrava de Visconde quando juntos caminhavam do sitio até a escola,
ele andava com passos rápidos, decido e feliz. Todos gostavam dele até o vento
brincava com seu cabelo fino e claro, até o vento gostava dele. Mas ela sempre
com medo um medo mudo, um medo do mundo e do medo.
“Meus pés estão cansados.
Ando, ando e nunca saio daqui. Eu preciso respirar aliviada”. E lembrava-se do
gole.
Um gole que deixou
sede.
O jeito era beber
mais um pouco d'água.
“Vambora!” Gritou
Visconde.
“Mais onde?
Onde?” Sentou-se emburrada no cantinho da calçada e começou a olhar seus pés
desnudos. Cobriu um, descobrindo o outro, começando a brigar com eles, entre um
vai e vem de cobrir e descobrir.
Vambora! Acorda!
Gritou Visconde zangado.
“Eu queria ter
um pé lindo. Um pé como o da Flaviane. Já viu o pé dela?”
“Eu não fico
olhando pro pé de ninguém. Só você que não tem o que fazer.”
Era isso e a
lembrança do rosto tão belo que mesmo rude ainda encantava, nunca teve tanta
coragem como ele e sentindo-se intrusa sempre o provocava, quase sempre o
provocava.
Agora tinha que reencontrá-lo,
depois de tanto tempo e sabia que logo não seriam três mais seriam quatro
naquela mesa de oito lugares guardados para as visitas que nunca vinham e também
nunca eram convidadas, uma casa decorada para fotos. A última foto foi no dia
do aniversário do pai. O casal sentou-se no sofá da sala um em cada canto, como
se tivessem medo de tocar-se. Com um gesto pediu que se aproximassem ele
calmamente empurrou o corpo magro para mais perto, a mãe fazia-se de dura e nem
se moveu. Ficou ali como se todo peso do mundo estivesse sobre si, sem mover um
milímetro do seu corpo, ameaçou algumas vezes com os olhos olhar o companheiro,
mas logo mudara o olhar, ele esboçou um sorriso e ali estava a foto. A foto
onde tinha mais cor na parede da sala do que no rosto dos pais. Como se tudo
tivesse deixado de ser, desde o dia que vieram pra cidade e largaram o sítio.
Se ao menos Visconde estivesse lá teria os feito sorrir. Mas agora ele chega de
viagem e tudo pode ficar mais tranqüilo, mais leve. E o melhor, ele chega e conta
como tudo está por lá, agora ele pode nos contar sobre os vizinhos e parentes.
Quem sabe traz vida pra essa casa escura. E quem sabe me fale de Antônio. Fale
como ele ficou depois de minha partida. Quem sabe diga que ele pensa em mim.
Quem sabe eu devo voltar e encontrá-lo e posso ter novamente a minha vida que
foi interrompida. Ou quem sabe ele está ocupado demais para pensar em mim. Visconde
e seu sorriso irão dizer-me, sei que irá contar-me e assim como quando eu era
uma menina me guiará com seus pensamentos astutos e irei poder escolher o
caminho dos meus passos.
Tem coisas que
não vão embora, Tem muita coisa que fica e vai ficando e só adormece com o
tempo e mesmo assim na teima da lembrança elas voltam em sonhos. Você vai
descobrindo o gosto aos poucos, como quem saboreia uma fruta que não conhecia.
Você admira colhe e se enche de encanto pelo aroma, depois aos poucos vai
furtando o gosto dela. Assim são as coisas boas, elas um dia acabam. Mas como o
gosto da fruta boa, você não esquece, você sente o aroma que ficou nas mãos e o
gosto que ficou na boca. Você sente o gosto bom da saudade.
Eram apenas
alguns dias, mas o tempo parecia andar para trás, a semana passava espantada como se
soubesse dos seus passos incertos. Era cedo, mas o coração caducava em caminhos
tortos. Uma expressão incompreensível. Um susto. A vida em silêncio, lenta. Agora
causava uma inquietude, o riso quase saltava naquela agonia de nada fazer. Esperando
um pouco do que não tem e dividindo um pouco do que teme. Ainda se tivesse na
alma o que não tem no rosto. O rosto marcado com pontas de faca de um tempo que
ela não lembra, pois dormia. Poderia ter pincelado o coração com cores, mas nem
mesmo isso pôde fazer. Um coração feito um oco e um rosto de um doente. Foi quando se apercebeu do mundo, um mundo mudo, mudo
de medo , medo do escuro, medo do claro, medo do nada e de tudo.
A ultima navalha afiada encontrou o rosto delicado,
deu febre, deu susto no susto, sujara todas as mãos de sangue. Pobre rebelde,
não percebeu que estava numa armadilha. Deformada correu como louca, correu com
o gosto do sangue nos lábios. Tinha degraus, muitos degraus ainda e era um
encontro que nunca encontrava, era uma missão descabida e uma mensagem com
palavras tortas.
Acorda aflita e corre ao espelho, o rosto é o
mesmo, não tem corte, mas dói. Chora.
Apressa os passos é dia de encontrar Visconde.
Lene Dantas.
Muito lindo. (Ed Bianco)
ResponderExcluir