A BOLSA



E tudo é sensação de um tempo em que ela ainda sorria à toa, quando as palavras que mais lhe deixavam alertas eram as estranhas.  Carregava na bolsa um bloco de papel, uma caneta bic azul, um espelho quadrado com bordas alaranjadas e um batom sabor de morango com um tom escarlate, daqueles que parecem fazer sangue na boca. Mas a boca, já tinha sangue por si, pois as palavras que engoliu a vida toda a deixaram com a boca ao relento, recebendo a brisa que às vezes vinha quente e às vezes vinha fria. E nunca falava, nunca falava o que queria falar na hora certa. Sempre ficou o depois na sua garganta, sentia-se cansada de engolir interrupções abruptas. Mas ainda vivia seu presente anonimato, engolindo o fel e sua boca seca a cada dia vai fechando sem mesmo ela perceber. Agora se perdeu os risos, perdeu-se o caminho, perdeu-se nela. Quando se viu era partida ao chão em partes. Partes que parecia não juntar. A mente tinha cantos escuros que rapidamente multiplicavam-se e havia muros altos que a cercava e por mais que tentasse fugir, sempre se deparava com os muros. Tinha nos olhos um mistério, que a deixava terna e ao mesmo tempo selvagem. Perdia-se no que desejava ser, no imaginário da sua mente que sempre encontrava lugares mágicos, onde ela flutuava, onde encontrava sorrisos e perfumes; Era fascinada em perfumes e decorava cheiros e assim escolheu seu primeiro namorado, pelo o cheiro, o cheiro do bombom de chocolate que ele a entregou. Até hoje, não esquecera o cheiro do bombom, mas dele esqueceu-se a muito.

Naquela manhã, sentou diante do espelho, fantasiando esquecer-se do passado, assim como nos filmes que assistia e apenas algumas palavras eram capazes de fazer esquecer-se. Quis saber o que ela era e já que não encontrava respostas, pensou se não seria bom, perguntar para os mais próximos. Lembrou-se da mãe, mas essa possivelmente a encheria de elogios; Lembrou-se do pai que a encheria de cobranças. Desistiu. Levantou-se. Foi para loja onde trabalhava há alguns meses e entrou com aquela sensação de que ninguém perceberia sua presença. Passou rapidamente por todos, com um tímido bom dia, pouco notado, exceto por Chagas que apaixonou-se por ela desde o primeiro instante. Ele nada entendia do que ela enfrentava agora, mas gostava do jeito que mexia o cabelo e do jeito que sorria e gostava de ouvi-la, mas como ultimamente ela calou-se, ele sentia falta do jeito que ela contava as histórias. Hoje Alda chegou desfigurada, chegou com os olhos baixos e ele sabia que ela não estava bem. Na hora do almoço, mexeu a comida para lá e para cá, era como se observasse seu mundo, toda hora parava e examinava o arroz, o frango, o feijão e como se dividiam no prato e como o cheiro de tudo isso junto, lhe despertava um apetite que hoje ainda não chegou. Olhava as pessoas ao redor e pareciam tão felizes ou tão conformadas com tudo que tinham. Ela não estava feliz e nem conformada com o que tinha. Sentia um medo de aceitar sua realidade, e toda hora fugia dela, então começou a brincadeira de pique, quando ela cansava e parava a realidade mais uma vez lhe dizia um olá. Dizia a si mesma que nada aconteceu e que tudo o que tinha que sumir, sumiria de sua mente. Mas quando o silêncio chamava as estrelas e os olhos fechados lhe mostravam o caminho do sono, ela lembrava. Então decidiu deitar-se apenas quando estivesse tão cansada que as pálpebras não agüentasse sustentar-se e quando as pernas sozinhas se movessem até o sossego do leito, mas ainda assim, mesmo caminhando e dormindo, cansada de tanto andar de um lado para o outro, o silêncio da noite e o sossego do seu sono lhe trazia o que não queria. E assim quando dormia, quando tudo parecia sumir, ela sonhava. O sonho repetia-se, o sonho era sua realidade que precisava sumir. O sonho era o seu tormento.

Perguntava-se o que fazer. Como livrar-se da avalanche de sentimentos que não queria sentir. Então, certa manhã cansou-se e resolveu desistir de lutar e aceitar que não podia contrariar o que lhe oprimia, mas lutar pára sorrir e ser feliz. Começou sossegadamente a plantar suas flores, e cada vez deixava seu jardim mais colorido e empenhou-se em falar, falava como quem canta, falava o que estava dentro da alma, falava sobre sua fome. Viu que estava na hora de amar-se. Talvez algumas roupas novas, ou algumas fotos novas. O que será que faz uma mulher feliz? Perguntava-se. Escolheu uma bolsa grande e bonita de cor bege e resolveu colocar tudo, o que uma mulher segura precisa. Nunca foi segura, mas assistia tantos filmes, tantas novelas e minisséries e lia tantos livros que de repente podia fazer o que tantas personalidades faziam. Podia de gata borralheira virar cinderela e prometeu a si mesma que meia noite ainda seria bela e mesmo que os trapos da roupa ficassem amostra ainda assim sorriria. E foi juntando maquiagem e foi juntados livros, perfumes e tudo o que ela achou que sempre devia está com ela, até a agulha de crochê e o novelo de lã com fios dourados que comprou semana passada para fazer um cachecol igual ao da recepcionista do seu ginecologista. Sempre que ia pra uma consulta preocupava-se como deveria está , como devia maquiar-se pois tudo lá parecia tão perfeito e tudo naquela moça era tão absurdamente simples e belo que a deixava sem graça desde a hora em que ainda entrava vestida até a hora que tinha que expor-se, então sempre dois dias antes ia ao centro e comprava lingerie, mas o seu temor começava quando olhava a recepcionista e sentia-se invisível. Logo depois que arrumou a bolsa resolveu sair, entrou no carro sentindo-se uma heroína e antes mesmo de fazê-lo funcionar, espirrou colônia pra que tudo cheirasse como ela, retocou a maquiagem, tirou os sapatos e começou o seu caminho em direção ao mundo, ao novo mundo que ela queria conhecer. Cismou consigo mesma por saber aonde iria e o que iria fazer. Primeiro resolveu parar um pouco no mar. Desejava desde muito caminhar a beira mar, sempre via isso em fotos de revistas, e pensava se não podia ser como aquelas mulheres. E o que será que elas pensavam? Não sabia, mas hoje descobriria. Colocou o pé na areia e fotografou-se sorrindo. Tomou um pouco da areia do mar num saquinho que trazia e colocou na bolsa e se foi. Seu destino agora era as flores e procurou um jardim, um jardim que estivesse recheado de belas flores, encontrou e lá escolheu entre todas a mais bela e a levou.

Chegando a casa deitou-se na cama e por um momento sentiu-se leve. Depois de refazer o trajeto que seguiu, levantou, pegou sua bolsa e foi avaliar os seus tesouros, examinou o saquinho com um pouco da areia que trouxera e a flor, lamentavelmente inquietou-se ao ver que as arrancara dos seus mundos e que a areia já não era tão viva e nem tinha o cheiro do mar e a flor de bela murchava. Só assim enxergou-se.

Alda refez sua bolsa, percebeu que não era nenhuma atriz de cinema, percebeu que se esqueceu de perceber quem a amava, percebeu que se esqueceu de perceber-se. Percebeu que o sorriso vem, quando se aceita os fatos e deixou-se chorar quando preciso. Percebeu que era feliz apesar de triste. E viu que podia se sentir bonita e viu que muitos a amavam. A casa pareceu pequena e naquele momento ela precisava de espaço, desceu apressadamente para o jardim e procurou uma árvore aonde pudesse sossegar. O silêncio dos seus ramos trazia paz é como se orassem baixinho por ela. Sentou-se e juntou os pedaços de sua emoção, aos poucos foi despedindo-se de tudo que precisava esquecer. Fechou os olhos e os jogava ao ar, deixando a brisa leve levá-los e começou a lembrar apenas do que a fazia sorrir.

Hoje Alda pintou as unhas cada uma de uma cor diferente, pintou os cabelos de acaju, passou batom vermelho e escreveu no seu velho bloco de papel.

“Na minha bolsa, só levarei o que me faz feliz e o que me faz feliz é a cada dia ser eu mesma e cuidar melhor de mim”


Lene Dantas



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