DIA DE FEIRA (Cheiro de Maça)


DIA DE FEIRA (Cheiro de Maça)
"Senti cheiro de maça na hora que beijei o seu rosto. Senti cheiro de maça. Estava tão perto, tão perto que perdi o jeito de dizer, não tive coragem.”
Ele olhou e sorriu. Isso foi antes, antes da pandemia. Era sábado e a feira estava cheia de gente. Gente que andava por todos os lados. Alguns apressados, mal olhavam quem passava. Na primeira banquinha, estava a irmã Nair, como ela gritava, toda hora ela falava:
“Olha o pratinho minha gente. Tem vatapá, tem paçoca, tem creme de galinha. E soltava uma alta gargalhada quando via um conhecido, intimando para que comprasse. Sempre com o sorriso no rosto, unhas feitas, cabelos arrumados. Mas, tinha olhos tristes. Quando calava, tinha um olhar mudo de quem não sabia bem o que fazer. As vezes sorria sem sorrir, e dizia sem dizer. Mas quando esquecia por um pouco, aquela angustia de dias difíceis ela agitava sua banca e não tinha quem passasse que ela não observasse. A voz rouca, de longe se ouvia:
“Como vai passando e não vem aqui, aproveitar minhas delícias?” E o riso era farto e dividido.
Ao lado dela ficava Eleonora, uma mulher intrigante. Tudo sabia de todos, tudo comentava. Não tinha empatia, mas conseguia influenciar bem os clientes. Lá tinha as mais suculentas laranjas. Como eu gostava daquelas laranjas. Mas eu sabia, que ao chegar, tinha que lhe contar algo. Era uma informação, em troca das doces laranjas. E eu prontamente lhe contava. Ou sobre o trabalho, ou sobre a casa, ou sobre o novo vendedor. Isto a deixava satisfeita, sorria meio de lado. Baixinha e franzina, rápido se movimentava, escolhendo as laranjas e colocando uma a uma dentro da sacola, enquanto eu lhe passava uma informação, para que ela passasse ao próximo e ao próximo cliente e assim sucessivamente tivesse um novo assunto com cada um, e tivesse informações que ninguém tinha, apenas ela.
E foi exatamente assim, que eu soube que seu Manuel da banca dos produtos naturais, tinha se afastado do trabalho. Pois perdeu o filho novinho para as drogas. O filho desde cedo, não queria nada com nada e começou a sair com a filha de seu João, que trabalhava na linha de ônibus da vila. De uma hora para outra, se perdeu. Nada de escola, chegava tarde, não ouvia ninguém. Em casa, só ia mesmo para dormir. Seu Manuel, de tão triste, deu AVC e agora estava afastado e não podia tão cedo voltar. Por um momento ouve um silêncio, como se isso também a deixasse triste e continuou:
" Coitado né?"
Concordei e sai com minhas laranjas, mas triste por seu Manuel. Tão humilde, tão gentil. Lembro que minha mãe, sempre me fazia comprar lambedor com ele. Eu apenas falava: "É aquele preferido da mãe". Ele embrulhava com cuidado, como se tivesse para me entregar, uma grande descoberta, algo que só ele sabia fazer, pois sua avó era índia e lhe ensinou muitos remédios caseiros. Todos estavam num livrinho de receita que sua mãe lhe deu e ele não podia dizer para ninguém como se fazia. Senão. Dizia ele: Não fazia efeito.
“Esse livrinho aqui, vai para meu filho, quando eu não puder mais trabalhar e ele vai fazer do jeitinho que está aqui.”
Era o sonho dele, e agora nem pode trabalhar.
Do lado da banca de seu Manuel, ficava a da minha tia. Ela fazia doces. Doces de tudo que se possa imaginar. Doce de Abobora, de banana, de caju. Tudo com muito capricho. Eu sempre ia ajudar . E como gostava daquela gente que ia e vinha. Como gostava do jeito que minha tia falava entusiasmada sobre seus doces. E o cheiro da feira, percorria o quarteirão. Mas no sábado, sábado era o melhor dia.
Os sinos da Igreja tocavam e começava a agitação.
Dona Tancinha , era sempre uma das primeiras a chegar , gostava de doce de caju. Vinha com seu bonezinho na cabeça, uma blusa toda abotoada até o pescoço. De longe, se escutava a irmã Nair: E o calor com esses botões fechados. Caia na gargalhada.
Dona Tancinha, pouco ligava. Comprava o doce, ovos ,remédios e ia embora pra sua casa que ficava no final do quarteirão. Se perdia no meio de toda aquela gente, sempre era assim, um esbarrando no outro. E foi num dia como esse, que chegou Felipe, trazendo seu primo Marcos que veio junto para lhe ajudar com as frutas. Felipe trabalhava ao lado da minha tia. Trabalhava com seu pai , que gostava mesmo era de ficar ouvindo jogo de futebol com o radinho no ouvido. Felipe era muito esforçado, acordava cedo pra ir comprar as frutas e verduras. Sempre estava feliz,, mexendo com um e outro . Este sábado chegou faceiro com um rapaz do lado, os dois vinham animados, conversando o tempo todo. Chegou e me disse " Esse é meu primo, Marcos. Vai me ajudar hoje aqui.
Antes que eu pudesse falar algo, ele se aproximou, beijou meu rosto dizendo, que tinha muito prazer em me conhecer, que sabia que eu era muito boa pessoa. Que eu devia ser a rainha da feira porque sou muito bonita.
Depois que senti seu cheiro, não escutei mais nada. Cheirava a maça...
Era de maça o seu cheiro. Eu não sabia, mas descobri nesse sábado.
Como amo maça, pensei e disse alto:
“Como amo Maça!”
Lene Dantas

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