A CARTA


Secava a boca com gotas pálidas de palavras atravessadas. Não, ninguém sabia explicar porque Alice estava aflita. Ela apenas calava-se em seu mundo inculto. Na tarde passada, foi até a banca de jornal, olhou rapidamente as manchetes que estavam expostas na capas das revistas, seu rosto era imóvel e, apesar da simpatia do jornaleiro, não motivou-se a sorrir. Seu caráter estava apático e seus olhos alegres agora eram umedecidos com o desalento. Há alguns dias, recebera uma carta, abriu aflita a correspondência, depois subiu lentamente os degraus como se levasse consigo o peso do que lera.

Pessoas passavam, carros barulhentos buzinavam, amigos casavam-se,outros separavam-se, riam, choravam, mas no seu apartamento, no quarto andar, na rua Marechal Deodoro, o vento passava uivando. O abandono tomava conta da cozinha, já não ligava com a louça, que esperava pelo banho da limpeza. As fronhas, cobertores, travesseiros, contavam uns aos outros segredos de madrugadas, onde Alice retraía os soluços. Enlinhava-se em memórias, sem a ajuda de notas ou livros, onde a melancolia acompanhava-a, saboreando sua solidão. Da janela, via a noite chegar, as estrelas ainda tentavam fazer-lhe companhia, mas quando desciam e falavam com ela, ela virava-se. Gostava da lua e, às vezes, em dias de veneta, confessava suas dores em olhares trocados, onde uma conhecia o mistério da outra. Seu quarto virara um breu pela manhã, pela tarde, pela noite. Sempre um breu. Apenas um papel branco fazia contraste com aquela escuridão. A carta em cima da cabeceira. A carta que, às vezes, ia às mãos de Alice, ia e voltava. Palavras giravam como cantiga de criança em sua mente e, por mais que ela abrisse e fechasse os olhos, elas sempre estavam ali. Cantarolavam cada vez mais alto em seus ouvidos. O peito gemia e a embriaguez da loucura definhava-a aos poucos. Hoje, não cria expectativas, não quer ouvir o barulho de risos, de falas, não quer ouvir o barulho dos carros, quer apenas o sossego do não ser, do não saber, do não querer. Levanta-se em passos vacilantes, pega uma folha de papel e, com as mãos trêmulas, escreve, diante do impacto das palavras que giram em sua mente. Escreve para a lua, sua cúmplice das noites desbotadas; enquanto escreve, olha-a e vê que ela está no seu estado minguante, a fase que sucede à lua cheia, sendo assim, ela pode escrevê-la à vontade, pois, certamente, saberá do seu lamento e saudará as suas dores. Hoje, sua dor será conhecida e o silêncio da carta será desvendado. Em meio à confusão de pensamentos, ainda reluta contra o desejo de nada saber, de nada ouvir, de nada ver. Mas acredita que pode encontrar a paz e ser como uma das estrelas que no céu espionam-lhe a cada noite, a cada aurora das madrugadas mal dormidas. E, ainda antes do amanhecer, termina sua carta feita em papel bordado e tudo porquê um dia quis ter o que já tinha e ser o que já era. Mas hoje, tudo era diferente. Não tinha mais medo, porque também a morte desaparecera de sua frente. Em lugar dela, via luz. "Então é isto!", exclamou de repente em voz alta. "Que alegria!"

Nota: O trecho destacado é do conto A morte de Ivan Ilitch, do escritor russo Leon Tolstói (1828-1910). Escrevi o conto A carta, encaixando esse trecho como exercício de criatividade literária.  


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Comentários

  1. Oi, amiga, mais uma obra interessante e com sentimentos de uma sensibilidade que só voce sabe exprimir, como ja disse me emociona ler seus escritos, e como a protagonista do conto eu tb ousei viver algo maravilhoso como o amor, um amor unico e especial mas que Deus não nos permitiu vivê-lo na realidade, foi um amor de alma e coração...hoje vivo de saudades......beijos

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  2. Muito obrigada Vilma!!! Fico realmente feliz e grata por todo seu carinho!! É muito bom ter você por perto! Beijos amiga...

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